sábado, 2 de março de 2013

Cântico da velhice (Ana Miranda)

Felizes aqueles que envelhecem, pois estão vivos.

Eles guardam em si todas as noites que tiveram,

Guardam as recordações, a incerteza, a sabedoria

E as muitas experiências do pecado e da virtude.

Felizes os que envelhecem, pois eles estão ávidos,

Não são mais esporádicos os seus sentimentos,

E bem mais ponderadas as suas esperas, sim,

Agora é muito mais visível a sua plenitude.

Os velhos são completos, pois têm em si a criança,

Têm o adolescente em si, o jovem, o interlúdio,

Em si têm os processos, as passagens, a tardança,

Do tempo têm o segredo, da eternidade o conteúdo.

Felizes os que envelhecem sem urgência, rindo,

Dançando, girando, tecendo, amando com ciúme

Como a sensação daqueles sonhos em que voamos.

Com filhos ou sem filhos, a envelhecer procriando.

Nada foi perdido, nem desfeito, em sua cronometria,

Todo o seu ímpeto transformou-se em premência

E o seu corpo e as suas rugas, em geografia.

Felizes os que envelhecem, eles são o pico lindo

Das montanhas, e o derradeiro queixume

De todas aquelas mil inexperiências vividas.

Têm cem olhos que sabem discernir as hidras,

E os cabelos feitos da alva prata mais pura.

Leves e significantes se abrem seus sorrisos.

Felizes são, a ciência agora é mais apreciada.

Conhecem claramente a fatalidade das estradas

E vão, vão, pois sabem que a vida se resume

Àquela água lassa que corre sob a clepsidra.

Todos temos de viver para uma posteridade,

Não importam nossos desejos, nossas vás mentiras.

Felizes os que envelhecem altivos, como os poetas

Descritos pelos poemas não-românticos, e boêmios

Versos em que a vida é feita apenas de brevidades.

Felizes são os velhos seduzidos e os que seduzem,

Desvendam labirintos, quimeras e traduzem linhas

Sem medo de errar, de morrer, ou do oblívio,

Cantados pelo cântico dos cânticos. Estão vivos,

Vivos, vivos, vivos, vivos, vivos!

Felizes aqueles que para sempre vivem.

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